Determinações de assassinatos foram captadas em conversas de advogado com chefe de cartório de Campo Grande (MS)
A quilômetros de distância, o PCC (Primeiro Comando da Capital) determinou, a partir de Mato Grosso do Sul, que integrantes da facção matem dois juízes e uma promotora de Justiça atuantes em Minas Gerais. A informação foi obtida pelo Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado) sul-mato-grossense durante uma investigação que identificou advogados como integrantes da organização criminosa.
De acordo com o Gaeco, 15 advogados formavam a “sintonia dos gravatas” [grupo de advogados]. Juntos, segundo a denúncia, eles prestavam serviços criminosos para o PCC. Esse grupo de advogados se subdividia entre os setores da “ajuda”, que fornecia auxílio material e financeiro a membros do PCC; e o de “recados”, responsável por enviar “salves” [comunicados] de lideranças da facção, numa espécie de pombo-correio.
Batizada com o nome de Courrier, a operação do Gaeco identificou que o advogado Bruno Ghizzi recebia informações privilegiadas de Rodrigo Pereira da Silva Corrêa, chefe do cartório da 1ª Vara de Execuções Penais do Estado. A reportagem não conseguiu contatar a defesa de Ghizzi e de Corrêa.
O MP disse ter encontrado, em conversas de WhatsApp entre Ghizzi e Corrêa, ordens do PCC para mandar matar um juiz da Vara de Execuções Criminais de Uberlândia, além de uma juíza e de uma promotora da Vara de Tóxicos de Belo Horizonte. Além deles, um promotor do Gaeco de Mato Grosso do Sul também foi alvo de ameaça de morte. Posteriormente, em depoimento à polícia, ele confirmou ter escutado um boato de que havia planos de assassinatos em andamento.
O nome dos magistrados e da promotora de Justiça não será revelado para resguardá-los. Ghizzi, segundo o Gaeco, suspeitava que os juízes e a promotora tinham conhecimento de suas ações e da organização criminosa PCC. Além disso, no celular de Corrêa também foram identificadas outras ordens de recados a ser repassados a integrantes do PCC, conhecidos como “salves”.
O processo, que teve como base a investigação do Gaeco, corre em segredo de Justiça. Por isso, promotores do Gaeco e o juiz Olivar Augusto Roberti Coneglian, da 2ª Vara Criminal de Mato Grosso do Sul, não aceitaram ceder entrevista. Apesar disso, o Núcleo de Jornalismo Investigativo da Record TV teve acesso à documentação.
Nela, além das ordens para matar os juízes e a promotora de Minas Gerais, chama atenção a citação ao preso Esdras Augusto do Nascimento Junior. Ele havia sido detido em Mato Grosso do Sul, mas, depois, apontado como integrante do PCC, foi transferido para o sistema penitenciário federal, sendo colocado em Brasília. Lá, ainda de acordo com a denúncia, ele teria se aproximado de Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, o principal chefe da facção criminosa paulista.
Nascimento Junior saiu do sistema penitenciário federal e retornou ao presídio de Gameleira, em Mato Grosso do Sul. Lá, ainda segundo o Gaeco, ele passou a retransmitir a advogados do PCC ordens de Marcola. A defesa de Marcola, porém, rechaça a informação. Segundo os advogados do líder do PCC, Marcola está desde o início da pandemia isolado no sistema federal, ou seja, ele não teria tido contato com Nascimento Junior. A defesa de Marcola diz, também, que todas as conversas do chefe do PCC são realizadas por meio de parlatório e gravadas.
Segundo o Ministério Público, o advogado Marco Antônio Arantes de Paiva, que representa Marcola, teria conversado com o advogado Rafael Mennella sobre a morte de um homem em Pedro Juan Caballero, no Paraguai. Na conversa, o Gaeco afirmou que eles teriam conversado sobre a morte de Carlos Limas de Souza Lima, assassinado na fronteira do Paraguai com o Brasil em setembro de 2021. Segundo o MP, na conversa, os advogados teriam dito que o assassinato ocorreu porque ele “matou um cara que era primo de um cara do partido [PCC] e sem a ordem do partido”.
O relatório apontou, também, que Marco Arantes indicou o advogado Luiz Gustavo Battaglin Maciel para auxiliar a família na liberação do corpo de Carlos Limas. Procurado pela reportagem, Paiva disse poder comprovar, com documentos, que todas as afirmações contra ele não procedem. Sobre a conversa da morte que ocorreu na fronteira, Paiva afirmou que Mennella e ele conversaram sobre notícias publicadas na imprensa e que ele nunca nem sequer tinha ouvido falar de Limas.
Já sobre a indicação de Battaglin, Paiva explicou que Mennella lhe perguntou se conhecia um advogado de confiança em Mato Grosso do Sul para indicar. E ele respondeu que conhecia o advogado Battaglin. “As premissas do processo são todas deduzidas sem fatos”, afirmou à reportagem o advogado Paiva.
Propinas e acessos livres
Tudo começou após um delegado ter prestado depoimento em uma ação penal contra o crime organizado em Mato Grosso do Sul em setembro de 2021. Notou-se que, após o depoimento, a ação foi consultada três vezes no sistema de Justiça. Todas as consultas, feitas na madrugada, foram a partir do login de Rodrigo Pereira da Silva Corrêa, chefe do cartório da 1ª Vara de Execuções Penais de Campo Grande.
De acordo com a investigação, Corrêa forneceu ao advogado Bruno Ghizzi seu login e senha de acesso ao sistema do Poder Judiciário em 2020. Para o MP, essa facilitação ocorreu para que o advogado tivesse acesso livre a processos de condenados ligados ao PCC. Corrêa afirmou, porém, que Ghizzi utilizava a senha sem seu consentimento. Ghizzi confirmou que fez as consultas na madrugada sob o argumento de que elas foram “relacionadas à sua atividade profissional”.
Além disso, de acordo com a operação, Ghizzi afirmou que a “sintonia dos gravatas” tinha papel relevante na estrutura da organização criminosa no estado. “Os ‘gravatas’ administram o dinheiro e contas bancárias do Primeiro Comando da Capital, como recebem ‘salves’, função esta que se chamaria ‘advogado de recados’”, afirmou o MP com base no depoimento do advogado.
Ghizzi relatou que o setor dos advogados do PCC no estado era administrado pelo preso Cristhian Thomas Vieira, conhecido como Tio Doni. No celular de Ghizzi, foram localizadas mensagens relacionadas ao PCC, contendo fotos de assassinatos recentes, além de mensagem informando a um investigado, identificado como Douglas Silva Fonseca, conhecido como Pelezinho, o andamento da operação do Gaeco, orientando-o a esconder seu celular.
A reportagem não conseguiu contatar as defesas de Vieira e Fonseca. Conforme apontou a investigação, o advogado Ghizzi também trocava mensagens com faccionados a respeito da manipulação de armas e de joias.
Segundo o MP, a atuação de Rodrigo Pereira da Silva Corrêa era similar à da advogada Inaiza Herradon Ferreira. Os dois seriam próximos. Enquanto Corrêa passava à advogada informações sigilosas sobre membros do PCC, ela chegou a dar, como contrapartida, uma viagem totalmente paga à cidade de Bonito.
Entre as informações entregues por Corrêa a Inaiza, segundo o MP, estava o fato de que um cliente da advogada, Edimar da Silva Santana, conhecido como Arqueiro, seria transferido de presídio. Em delação feita por Ghizzi, ele contou que Tio Doni era quem pagava aos advogados envolvidos. Entre eles, estava um assessor jurídico da Defensoria Pública. A reportagem não conseguiu contatar a defesa de Inaiza.
Para tudo isso, o esquema também pagava propina para que policiais penais transferissem presos e alterassem seus registros. Para a movimentação do preso Maxuesle Rodrigues Andrade, por exemplo, levado para Minas Gerais, Ghizzi teria pago R$ 40 mil em propina a uma pessoa ainda não identificada.
Segurança de quem julga
Por meio de nota, a Amagis (Associação dos Magistrados Mineiros) afirmou estar acompanhando o caso junto ao GSI (Gabinete de Segurança Institucional) no Tribunal de Justiça de Minas Gerais e confiar que “o GSI irá tomar as medidas necessárias para o encaminhamento da demanda”.
Também em nota, o GSI do TJ-MG afirmou que garante a segurança de seus magistrados e servidores. “Para tanto, além de medidas preventivas de segurança, de ações de inteligência e contrainteligência, mantém permanente relação institucional com os demais órgãos do Poder Judiciário e do sistema de segurança pública nacional e estaduais, não havendo, portanto, novidade quanto aos fatos recentemente noticiados pela imprensa”.
O GSI afirmou permanecer acompanhando a situação, “tendo adotado as medidas de segurança institucional cabíveis muito antes de os fatos virem a público”. “Importa salientar que os magistrados mencionados nas reportagens recebem do GSI a necessária proteção que lhes assegura a independência de seus julgamentos, livres de qualquer influência”, afirmou o gabinete.
A OAB-MS (Ordem dos Advogados do Brasil de Mato Grosso do Sul) criou uma comissão para acompanhar o caso. O advogado Luiz Renê Gonçalves Amaral, que preside a comissão, afirmou que a entidade aguarda acesso à documentação para os devidos encaminhamentos.