Especialistas garantem que a máxima é pouco seguida na prática; segundo juiz do TJMG, este é, na verdade, apenas um “princípio de julgamento”
“Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. O trecho do artigo 5º da Constituição Federal traz o chamado “princípio da presunção da inocência”, uma máxima que já está na ponta da língua da maioria das pessoas. Porém, na prática, segundo especialistas ouvidos por O TEMPO para o terceiro dia da série de reportagens O custo da injustiça, a regra tem muitas exceções e uma subjetividade que a enfraquece nos tribunais do país, levando a um encarceramento em massa e a uma superlotação dos presídios.
Defensor público há 15 anos, Wilson Hallak afirma que o princípio não é “muito obedecido” nos tribunais mineiros. “Prender alguém antes do trânsito em julgado é ferir de morte este princípio. No caso do Eugênio Fiúza de Queiroz, por exemplo, que passou 18 anos preso injustamente, ele foi preso em uma praça, sem estar em flagrante e por meio de um reconhecimento equivocado. Ele foi mantido preso sem ter uma decisão transitada em julgado. Quantas outras pessoas são presas inocentemente sem o direito de recorrer?”, indaga.
O juiz auxiliar da presidência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), Thiago Colnago, explicou que, na prática, nos tribunais e nos estudos jurídicos mais recentes, não se fala mais em presunção da inocência, mas sim em “presunção de não culpabilidade”, o que, na sua opinião, seria completamente diferente.
“É, tão somente, um critério de julgamento. A Constituição não estabelece em lugar nenhum uma presunção de que todos são inocentes. O que ela estabelece é a necessidade de comprovação de culpa para que alguém seja considerado culpado e, assim, condenado”, argumentou. “O que você chama de ‘presunção de inocência’ nada mais é do que o critério que o juiz vai usar quando estiver em dúvida em um julgamento”, completou.
Ainda conforme Colnago, casos como o dos irmãos Naves e o de Eugênio Fiúza de Queiroz, que causaram, respectivamente, reclusões injustas de oito e 18 anos, são causados principalmente por erros na fase de reconhecimento.
“Se você chega à sua casa e tem um cara negro com uma sacola na mão, no seu quintal. O que você vai presumir? Que ele invadiu lá para furtar. Aí essa pessoa foge e, depois de um tempo, te chamam para uma audiência. Lá (no tribunal), você vê um sujeito negro, preso e algemado. e o juiz pergunta se é essa a pessoa. Tem gente que fala que não ou que não tem certeza. Mas tem muita gente que fala que tem certeza. São erros de convicção, da pessoa. Temos que ter um sistema organizado para que o índice de erros seja o menor possível, pois a perfeição nunca vai existir. É uma atividade humana”, disse o juiz.
Já Ernane Neves, juiz de Execução Penal, defende que o não cumprimento da presunção da inocência seja uma excepcionalidade apenas nos casos em que a prisão busca salvar vidas, evitar fugas ou a eliminação de provas. “Quando há algum desses indícios, é necessária a prisão, mas tem que ser uma excepcionalidade, em casos de fato necessários. É para evitar que o réu continue praticando crimes ou coloque a vida de alguma vítima em risco”, conclui o magistrado.
Prisões mineiras têm 24 mil pessoas ainda não condenadas
Em Minas Gerais, 35% de seus quase 70 mil encarcerados são presos provisórios, ou seja, ainda não foram condenados. Para a diretora do Innocence Project Brasil, Dora Cavalcanti, prisões provisórias enfraqueceriam a chance de essas pessoas se defenderem. “Quando alguém está detido, perde totalmente a condição de comprovar um álibi, por exemplo. Quando vamos ler os autos, vemos que as pessoas são condenadas em processos com poucos elementos, com base no relato dos policiais e reconhecimentos, muitas vezes, equivocados”, afirma.
Diretora nacional do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), Fernanda Valle lembra ainda dos casos que envolvem furtos de itens de subsistência, como, por exemplo, alimentos, fraldas ou leite em pó, em que os autores acabam passando anos atrás das grades.
“A defensoria ou os advogados pedem reconhecimento do princípio de insignificância e, quando não conseguem, às vezes, isso chega lá ao STF, e a pessoa acaba absolvida por ter furtado algo com valor insignificante em comparação ao patrimônio do estabelecimento, por exemplo”, diz.
FONTE: https://www.otempo.com.br/cidades/inocente-ate-que-se-prove-o-contrario-principio-constitucional-fica-so-no-papel-1.3091888